Neste 18 de maio, completam-se 100 anos desde que o papa João Paulo II nasceu na pequena cidade polaca de Wadowice.
A Polónia, dividida durante mais de 100 anos pelas três grandes potências vizinhas – Prússia, Rússia e Áustria –, tinha recuperado a sua independência no fim da Primeira Guerra Mundial. Foi uma época cheia de esperança, mas também de dificuldades, já que a pressão das duas grandes potências, a Alemanha e a Rússia, continuou a pesar sobre o Estado que se estava reorganizar. Nesta situação de angústia, mas sobretudo de esperança, cresceu o jovem Karol Wojtyla, que perdeu muito cedo a sua mãe, o seu irmão e, logo depois, o seu pai, de quem tinha aprendido uma piedade profunda e cálida. O jovem Karol era particularmente apaixonado pela literatura e pelo teatro, e depois de estudar para os seus exames do secundário, começou a dedicar-se mais a estas matérias.
«Para evitar a deportação, no outono de 1940, começou a trabalhar numa pedreira que pertencia à fábrica química Solvay» (cf. Dom e Mistério). «Em Cracóvia, ingressou clandestinamente no Seminário. Enquanto trabalhava como operário numa fábrica, começou a estudar teologia com livros antigos, para poder ser ordenado sacerdote em 1 de novembro de 1946» (cf. Ibid.). É obvio, não só estudou teologia nos livros, mas também a partir da situação específica que pesava sobre ele e o seu país. É uma espécie de característica de toda a sua vida e o seu trabalho. Estuda nos livros, mas experimenta e sofre as questões que estão atrás do material impresso. Para ele, como jovem bispo – bispo auxiliar desde 1958, arcebispo de Cracóvia desde 1964 – o Concílio Vaticano II converteu-se numa escola para toda a sua vida e o seu trabalho. As grandes perguntas que surgiram especialmente sobre o chamado Esquema 13 – logo intitulado Constituição Gaudium et Spes – foram as suas perguntas pessoais. As respostas desenvolvidas no Concílio mostraram-lhe o caminho a seguir para o seu trabalho como bispo e logo como Papa.
Quando o cardeal Wojtyla foi eleito sucessor de São Pedro, em 16 de outubro de 1978, a Igreja estava numa situação desesperada. As deliberações do Concílio apresentavam-se ao público como uma disputa sobre a fé, o que parecia privar a mesma da sua certeza indubitável e inviolável. Um pastor bávaro, por exemplo, comentando a situação, dizia: «No final, acolhemos uma fé falsa». Esta sensação de que não havia nada seguro, de que tudo estava em aberto, foi alimentada pela forma como se implementou a reforma litúrgica. No final, tudo parecia factível na liturgia. Paulo VI tinha fechado o Concílio com energia e determinação, mas logo, uma vez terminado, viu-se confrontado com mais assuntos, sempre mais urgentes, o que finalmente colocou em escrutínio a própria Igreja. Os sociólogos compararam a situação da Igreja nesse momento com a da União Soviética sob Gorbachov, quando toda a poderosa estrutura do Estado finalmente se derrubou numa tentativa de reformá-la.
Uma tarefa que superava as forças humanas esperava o novo Papa. Entretanto, desde o primeiro momento, João Paulo II despertou um novo entusiasmo por Cristo e pelo Sua Igreja. Primeiro, fê-lo com o grito na homilia de início do seu pontificado: «Não tenhais medo! Abri, sim, abri de par em par as portas a Cristo!» Este tom, por fim, determinou todo o seu pontificado e converteu-o num renovado libertador da Igreja. Isto estava condicionado pelo facto de que o novo Papa provinha de um país onde o Concílio tinha sido bem recebido: não se tratava do questionamento de tudo, mas da alegre renovação de tudo.
O Papa viajou pelo mundo, com 104 grandes viagens pastorais, e proclamou o Evangelho em todas as partes como uma enorme alegria, cumprindo assim a sua obrigação de defender o bem, de defender a Cristo.
Em 14 encíclicas, voltou a expor completamente a fé da Igreja e a sua doutrina humana. Inevitavelmente, ao fazê-lo, suscitou a oposição nas Igrejas do Ocidente cheias de dúvidas.
Hoje, parece-me importante enfatizar sobretudo o verdadeiro centro do qual deve emergir a mensagem de seus diferentes textos. Este centro veio à atenção de todos nós no momento da sua morte. O Papa João Paulo II morreu nas primeiras horas da nova festa da Divina Misericórdia. E, permitam-me aqui acrescentar um pequeno comentário pessoal que revela um aspeto importante do ser e do labor do Papa.
Desde o começo, João Paulo II sentiu-se profundamente comovido pela mensagem de Faustina Kowalska, uma monja da Cracóvia, que destacou a Divina Misericórdia como um centro essencial da fé cristã e desejava uma celebração com este motivo. Depois de todas as consultas, o Papa tinha escolhido o domingo in albis (Segundo Domingo de Páscoa). Entretanto, antes de tomar a decisão final, pediu à Congregação da Fé a opinião sobre a conveniência desta data. Dissemos que não, pois pensávamos que uma data tão antiga e cheia de conteúdo como a do domingo in albis não deveria sobrecarregar-se com novas ideias. Certamente não foi fácil para o Santo Padre aceitar o nosso não. Mas fê-lo com toda a humildade e aceitou o não da nossa parte uma segunda vez. Finalmente, fez uma nova proposta deixando o histórico domingo in albis, mas incorporando a Divina Misericórdia na sua mensagem original. Noutras ocasiões, de vez em quando, impressionou-me a humildade deste grande Papa, que renunciou às ideias daquilo que desejava porque não recebeu a aprovação dos organismos oficiais que, segundo as regras clássicas, ele devia consultar.
Enquanto João Paulo II viveu os seus últimos momentos neste mundo, a Festa da Divina Misericórdia acabava de começar depois da oração das primeiras vésperas. Esta celebração iluminou a hora da sua morte: a luz da misericórdia de Deus se apresenta como uma mensagem reconfortante sobre a sua morte. No seu último livro, Memória e Identidade, publicado na véspera da sua morte, o Papa resumiu uma vez mais a mensagem da Divina Misericórdia. Assinalou que a irmã Faustina morreu antes dos horrores da Segunda Guerra Mundial, mas que já tinha dado a resposta do Senhor a este horror insuportável. Era como se Cristo quisesse dizer através de Faustina: «O mal não obterá a vitória final. O mistério pascal confirma que o bem prevalecerá, que a vida triunfará sobre a morte e que o amor triunfará sobre o ódio».
Ao longo da sua vida, o Papa procurou apropriar-se na primeira pessoa do centro objetivo da fé cristã, que é a doutrina da salvação, e ajudar os outros a também apropriar-se dela. Através de Cristo ressuscitado, a misericórdia de Deus é dada a cada indivíduo. Embora este centro da existência cristã só nos seja revelado através da fé, também é importante filosoficamente, porque se a misericórdia de Deus não é um facto, devemos encontrar o nosso caminho num mundo onde o poder último do bem contra o mal é incerto. Depois de tudo, além deste significado histórico objetivo, é essencial que todos saibam que, no fim, a misericórdia de Deus é mais forte que a nossa fraqueza. Além disso, nesta etapa atual, também podemos encontrar a unidade interior entre a mensagem de João Paulo II e as intenções fundamentais do Papa Francisco: João Paulo II não é um rigorista moral, como alguns tentam retratá-lo. Com a centralidade da misericórdia divina, dá-nos a oportunidade de aceitar o requerimento moral do homem, embora nunca possamos cumpri-lo por completo. Entretanto, os nossos esforços morais se fazem à luz da divina misericórdia, que resulta ser uma força curativa para a nossa debilidade.
Quando morreu o Papa João Paulo II, a Praça de São Pedro estava cheia de pessoas, especialmente jovens, que queriam encontrar-se com seu Papa pela última vez. Não posso esquecer o momento em que Dom Sandri anunciou a mensagem da partida do Papa. Sobretudo, o momento em que o grande sino de São Pedro repicou, fazendo que esta mensagem resultasse inesquecível. No dia do funeral, havia muitas frases a dizer «Santo súbito!». Isso foi um grito que, de todos lados, surgiu a partir do encontro com João Paulo II. Não só na praça, mas também em vários círculos intelectuais, discutiu-se a ideia de dar o título de «Magno» a João Paulo II.
A palavra «santo» indica a esfera de Deus e a palavra «magno» a dimensão humana. Segundo o regulamento da Igreja, a santidade pode ser reconhecida por dois critérios: as virtudes heroicas e o milagre. Os dois critérios estão estreitamente vinculados. A expressão «virtude heroica» não significa uma espécie de façanha olímpica; ao contrário, em e através de uma pessoa revela-se algo que não provém dele, mas que a obra de Deus se faz visível nele e através dele. Não é uma competência moral da pessoa, e sim renúncia à própria grandeza. O decisivo é que a pessoa deixa que Deus trabalhe nela, e assim o trabalho e o poder de Deus fazem-se visíveis através dela.
O mesmo se aplica à prova do milagre: aqui tampouco se trata de um evento sensacional mas sim da revelação da bondade de Deus que é Pai de uma maneira que vai além das meras possibilidades humanas. O santo é um homem aberto a Deus e imbuído de Deus, que se afasta de si mesmo e nos deixa ver e reconhecer Deus que é santo. Verificar isto legalmente, na medida do possível, é o significado dos dois processos de beatificação e canonização. Nos casos de João Paulo II, ambos os processos se fizeram estritamente de acordo com as regras aplicáveis. Portanto, agora ele é-nos apresentado como o pai que nos deixa ver a misericórdia e a bondade de Deus.
É mais difícil definir corretamente o termo «magno». Durante os quase dois mil anos de história do papado, o título «Magno» só foi outorgado a dois papas: Leão I (440-461) e Gregório I (590-604). A palavra «magno» tem uma conotação política em ambos, na medida em que algo do mistério de Deus mesmo faz-se visível através da atuação política. Através do diálogo, Leão Magno conseguiu convencer Átila, o Príncipe dos Hunos, que poupasse Roma, a cidade dos príncipes, os apóstolos Pedro e Paulo. Desarmado, sem poder militar ou político, mas pelo poder da convicção da sua fé, conseguiu convencer o temido tirano a poupar Roma. O espírito demonstrou ser mais forte na luta entre espiritual e temporal.
Embora Gregório I não tenha tido um êxito tão espetacular, também conseguiu proteger Roma contra os lombardos, de novo contrapondo entre poder espiritual e o poder temporal e alcançando a vitória do espiritual.
Se compararmos a história dos dois Papas com a de João Paulo II, a sua similitude é evidente. João Paulo II tampouco tinha poder militar ou político. Durante as deliberações sobre a forma futura da Europa e da Alemanha, em fevereiro de 1945, observou-se que a opinião do Papa também devia ser tomada em conta. Então Estaline perguntou: «Quantas brigadas tem o Papa?». É claro que o Papa não tinha exércitos ao seu dispor. Mas o poder da fé mostrou ser um poder que derrubou o sistema de poder soviético em 1989 e permitiu um novo começo. É indiscutível que a fé do Papa foi um elemento essencial no desmoronamento do poder comunista. Assim que a grandeza evidente em Leão I e Gregorio I é certamente visível também em João Paulo II.
Deixamos em aberto se o epíteto «magno» prevalecerá ou não. É certo que o poder e a bondade de Deus se fizeram visíveis para todos nós em João Paulo II. Num momento em que a Igreja sofre uma vez mais a aflição do mal, este é para nós um sinal de esperança e confiança.
Querido São João Paulo II, rogai por nós!
Bento XVI